Īśvara praṇidhanadvā (YS 1;23)
Ou, o entendimento de Īśvara.
Ou, a mente torna-se menos reativa quando ela compreende e acomoda essa inteligência, que é Īśvara, que rege todo o universo.
Muitas vezes, esse sūtra é traduzido como entrega a Īśvara. Essa entrega, é a entrega dos papéis de ator e desfrutador dos resultados das ações; é vairagya, oriundo do entendimento de que Īśvara, que é brahman, nada faz e nem desfruta dos resultados das ações (sūtra 24). O entendimento dessa inteligência, que tudo rege, não é tocada por qualquer tipo de intervenção individual. É a capacidade de colocar o ego em seu devido lugar e compreender que não temos a menor capacidade de alterar os acontecimentos ao longo do tempo. O décimo capítulo da Gītā recebe o nome de vibhūti yoga; ou seja, as glórias de Īśvara.
É a capacidade de enxergar todas as conquistas, de todas as pessoas, como as glórias de Īśvara. Pois, Īśvara é o próprio dharma; a própria lei universal que tudo rege. Quando há esse entendimento, a pessoa torna-se mais objetiva e desapegada. Ela entende que os resultados das suas ações não determinam quem ela é. Há o entendimento de que Eu não sou o ator e, portanto, não sou o resultado das ações. Há o entendimento do que é o ego e, principalmente, de que o ego não é um elementos separado do Todo. Esse é o entendimento de Tat tvam asi, segundo as Upaniṣads. Esse é o entendimento de samatvam, quando Kṛṣṇa define yoga na Bhagavad Gītā; de que tudo é um. A entrega, aqui, é nada mais do que o entendimento. Por isso, o maior dos devotos é o sábio.
Buddhirjñānamasammohaḥ kṣamā satyaṃ damaḥ śamaḥ
Sukhaṃ duḥkhaṃ bhavo’bhāvo bhayaṃ cābhayameva ca (BG 10;4)
Ahiṃsā samatā tuṣṭistapo dānaṃ yaśo’yaśaḥ
Bhavanti bhāvā bhūtānāṃ matta eva pṛthagvidhāḥ (BG 10;5)
A capacidade de entender a sua natureza, a liberdade da ilusão, a capacidade de acomodar, a verdade, a capacidade de se conter e evitar o desenvolvimento de pensamentos opostos ao dharma, prazer, criação, destruição, medo e ausência de medo, não-violência, equanimidade, satisfação, disciplina, caridade, fama (positiva ou negativa) e todas as formas de vida; existem por Minha causa.
*Vale à pena dar uma olhada no que diz o sūtra 45 do segundo capítulo.
Praṇidhāna significa, literalmente, colocar algo próximo, ou, acomodar algo. Nesse contexto do sūtra, significa acomodar e apreciar essa inteligência, que é Īśvara; que rege todo o universo.
Essa atitude está sustentada em uma tranquila acomodação em relação a como as coisas são e acontecem. Quando vivo a vida em conformidade com o dharma; apreciando essa inteligência, que é Īśvara. Quando vivo dessa maneira, meus gostos e aversões perdem força e tenho a experiência dessa pessoa livre da pressão das próprias exigências.
Esse sūtra, também faz um contraponto ao sūtra 20; pois começa com a preposição “ou”, nos dando esse entendimento.
No sūtra 20, são apresentadas algumas qualificações, ou, até mesmo ferramentas (upāyas) para a experiência do samādhi. Experiência, pois está apoiada (upāya) em uma mente que possui determinadas qualificações; permitindo experimentar um estado de liberdade de exigências, a partir da apreciação de um objeto. O sūtra 20 está falando, em princípio, no samādhi apoiado em experiências; o que, ainda não é mokṣa.
Já esse sūtra, está falando sobre a capacidade de compreender essa inteligência; essa ordem como brahman. Compreendendo essa ordem, abrimos mão dessa ideia de que somos os atores e, portanto, os resultados daquilo que fazemos.
É preciso compreender que o ātmā; ou seja, Eu, não sou o ator. É necessário compreender bem a ideia que Kṛṣṇa apresenta para Arjuna no capítulo 4 e 5 da Bhagavad Gītā, sobre a não-ação na ação. Pois, quem age é o complexo corpo-mente. O conceito de ator, só existe quando há a identificação com esse complexo; chamado de ahaṅkāra, que é, literalmente, ator, em sânscrito.
Isso também tem a ver com a compreensão de Īśvara. Pois, se acreditamos que, a menos que eu faça alguma coisa, algo acontecerá; é uma crença. As coisas acontecem espontaneamente. Existe uma cadeia de acontecimentos. Existe uma inteligência, uma ordem “fazendo tudo acontecer”. Você não comanda a sua digestão, pensamentos ou emoções. Tudo isso acontece espontaneamente.
Esse é o sábio; aquele que reconhece a não-ação, na ação. Dito isso, segue desempenhando os seus papéis, mas não está mais identificado nem com o papel e nem com o resultado. O sábio age, simplesmente, porque tem que agir; porém, não há mais o interesse no resultado da ação. O sábio age para inspirar as outras pessoas. Isso é asamprajñāta samādhi (fazendo, mais uma vez, o contraponto ao sūtra 20). Isso é mokṣa; a compreensão da não-ação na ação.
Essa preposição “ou”, também faz menção ao sábio; ao renunciante. Faz menção a esse outro estilo de vida, que é jñāna yoga; na qual a dedicação é total ao conhecimento. Não há mais a necessidade de amadurecimento e qualificação da mente. Diferente de karma yoga, como veremos, logo abaixo, nos comentários.
Para o sábio não há nenhum esforço a ser realizado. O sábio compreende que para que ele exista, nenhum esforço é necessário. Ele já é livre. Portanto, aqui, também se faz um contraponto ao sūtra 22, no qual Patañjali fala sobre um determinado esforço que deve ser feito na direção do samādhi. Quando existe Īśvara pranidhāna, não existe esforço.
Isso é chamado de vidvat-sannyāsa; ou seja, quando a pessoa abre mão de todas as atividades, pois ela reconhece que não é o ator. Essa pessoa pode vestir laranja (a roupa de um renunciante), não ter família ou papéis sociais. Essa pessoa reconhece que mesmo agindo; não está agindo. Essa pessoa é um karma sannyāsī e, também um jñāna-karma-sannyāsī.
Na realidade, o ator só existe para quem se identifica como tal. É como chamar alguém pelo nome. “Bruno!!!” Apenas, a pessoa que possui esse nome, responderá. Da mesma forma, acontece no Veda. Pois o Veda prescreve inúmeros rituais. Só responderá à essas ações, quem continua identificado como o ator e, precisa de determinados resultados.
Tal pessoa não está mais interessada e nem precisa realizar rituais prescritos pelo Veda e, na verdade, nenhum outro tipo de ação. Ela pode, simplesmente, partir e viver uma vida de isolamento, dedicada à contemplação do Ser; ou, seguir com suas atividades, com a compreensão da não-ação na ação.
Um grande exemplo disso, dentro das histórias da cultura da Índia, era o rei Janaka. Ele era um grande governante. Não era um renunciante em termos de estilo de vida. No entanto, mesmo com todas as atividades reais desempenhadas, ele tinha a compreensão de que não era o ator.
Karmaṇaiva hi saṁsiddhimāsthitā janakādayaḥ
Lokasaṅgrahamevāpi sampaśyankartumarhasi (BG 3;20)
Certamente, o rei Janaka e outros, alcançaram a liberdade através da ação. Ao menos, considerando a proteção das pessoas, você deve agir.
A Īśāvāsya Upaniṣad diz:
Om īśāvāsyam idaṁ sarvaṁ yat kiñca jagatyāṁ jagat
Tena tyaktena bhuñjīthā mā gṛdhaḥ kasya svid dhanam (1)
Oṁ. Tudo isso que existe no universo é a manifestação de Īśvara; ou seja, é permeado por essa inteligência. Através dessa capacidade e maturidade para acomodar; não deseje a riqueza de quem quer que seja.
A Bhagavad Gītā diz:
Mayā tatamidaṃ sarvaṃ jagadavyaktamūrtinā
Matsthāni sarvabhūthāni na cāhaṃ teṣvavasthitaḥ (BG 9;4)
O universo inteiro é permeado por Mim; cujo a forma não pode ser descrita. Todos os seres existem por causa de Mim. Mas, Eu não existo por causa deles.
A Kena Upaniṣad diz:
Śrotasya śrotaṁ manaso mano yad
Vāco ha vācaṁ sa u prāṇasya prāṇaḥ
Cakṣuṣaścakṣuratimucya dhīrāḥ
Pretyāsmāllokād amṛtā bhavanti (1;2)
O Ser é, realmente, o ouvido do ouvido; a mente da mente; a fala da fala, o prāṇa do prāṇa; o olho do olho. Aqueles que possuem discernimento (que entendem a natureza do Ser) se libertam desse mundo (da identificação com o ator) e, portanto, não estão mais sujeitos à morte.
No capítulo 2 da Bhagavad Gītā, Kṛṣṇa fala para Arjuna sobre dois estilos de vida: Karma yoga e jñana yoga.
Ao falar sobre esses dois estilos de vida, isso parece confundir, um pouco a cabeça de Arjuna. Pois, para ele, está claro que o conhecimento é o único meio para a liberdade. Mas, ao mesmo tempo, Kṛṣṇa está dizendo para Arjuna a desempenhar o seu papel de guerreiro, na batalha que está prestes a acontecer.
Para Kṛṣṇa, o mais importante não é o estilo de vida que será abraçado, mas, o compromisso estabelecido com ele.
Ele chama isso de niṣṭha; ou seja, um estilo de vida com um compromisso. Por exemplo, existem pessoas comprometidas com a prática de japa. Esses são chamados de japa-niṣṭha. Existem outros, comprometidos com práticas austeras; chamados de taponiṣṭha.
Mas, aquele que está em busca do conhecimento de brahman, é chamado de brahma-niṣṭha, ou jñāna-niṣṭha; ou seja, aquele que está comprometido com o conhecimento.
Kṛṣṇa diz ter revelado para o mundo, dois tipos de estilos de vida. Conhecimento, ou jñāna yoga para aqueles que não têm mais nenhum desejo específico que gere resultados que os prenda. E, o outro é karma yoga.
Karma yoga é esse estilo de vida que prepara a mente para o conhecimento de Brahman.
Karma yoga significa que todos as atividades, em todos os papéis que desempenho, devem ser feitos de maneira adequada e no momento adequado. Isso é a atitude de yoga. Essa atitude é chamada de buddhi-yoga no segundo capítulo da Bhagavad Gītā.
Dūreṇa hyavaraṁ karma buddhyogāddhanañjaya
Buddhau śaraṇamanviccha kṛpaṇāḥ phalahetavaḥ (BG 2;49)
A ação, quando impulsionada, apenas, pelo resultados, é inferior àquela, realizada com a atitude de karma-yoga. Busque abrigo nesse buddhi yoga (entendimento), ó Dhanañjaya! As pessoas que agem, apenas, pelos resultados, são miseráveis.
Buddhi é entendimento. É o entendimento acerca do Ser; ou seja, é jñāna-yoga. Jñānam eva yogaḥ – yoga é o entendimento relativo à sua natureza.
Ātmā-jñāna é o entendimento necessário em nossas vidas. Uma vez, perguntaram a um sábio sobre que tipo de yoga a Gītā versava, no im das contas – karma, bhakti ou jñāna yoga? Ele respondeu “Nenhum deles.” A Gītā fala sobre buddhi yoga. Kṛṣṇa diz “buddhyogam upāśritya”. Permita que buddhi yoga seja a sua base; a sua âncora . Estando firme nessa atitude, aja; cumprindo com todas as suas responsabilidades.
Cetasā sarvakarmāṇi mayi saṁnyasya matparaḥ
Buddhiyogamupāśritya maccittaḥ satataṁ bhava (BG 18;57)
Seja alguém que tem a mente sempre em Mim; mentalmente entregando todas as ações a Mim, tenho a Mim como o (objetivo) mais importante e, refugiando-se em karma-yoga.
Além disso, em relação aos resultados das ações, existe uma atitude chamada de prasāda-buddhi; ou seja, tudo aquilo que recebo é na forma de prasāda; um presente dessa ordem. Tudo aquilo que acontece comigo, ao longo da vida, não é aleatório. O aleatório é Īśvara.
Portanto, as minhas ações seguem de acordo com o dharma; que é Īśvara. Essa atitude é chamada de īśvara-arpana-buddhi. Essa atitude, através da qual, eu ofereço as minhas ações ao Todo. Como Swāmi Dayānanda gostava de dizer: eu sou alguém que contribui para essa ordem. Essas atitudes citadas acima, compõe o que é o karma yoga.
Em um primeiro momento, quando trazemos essa atitude de karma yoga para as nossas vidas, se estabelece o entendimento dessa inteligência; dessa ordem, que é Īśvara, que é Brahman, como aquilo que nos dá os resultados das ações. O entendimento de que essa inteligência, manifestada pelas inúmeras leis naturais que interferem nas nossas ações é aquilo que define o resultado daquilo que eu faço.
Porém, o entendimento de Īśvara, não significa o conhecimento do mesmo. São duas coisas diferentes. O conhecimento está no nível intelectual, no sentido de que compreendo essas leis. Mas, o entendimento de Brahman, não se estabelece por conceitos, como acontece com um objeto qualquer. Mas é a visão, clara, daquilo que tudo permeia. Algo que não se transmite por palavras ou formas.
Karma yoga é, portanto, aquilo que pode me preparar para esse conhecimento (Jñānam-jñāna yoga-upaniṣad-vedānta). Como é dito na Kena Upaniṣad e, até mesmo, mais à frente, nessa composição: “Que seja sabido que brahman não é aquilo sobre o qual as pessoas meditam”. Não são conceitos. É o livre de limitação.
Sannyāsa é uma vida de renúncia, dedicada ao conhecimento. Esse é o tópico de vedānta. Aliás, o único tópico, que estabelece a equação de que ātmā é brahman.
Por outro lado, karma yoga é para as pessoas que não tem essa inclinação à uma vida de renúncia; ou, até mesmo, não podem, pois têm responsabilidades a serem cumpridas. É sobre isso que Patañjali falou no sūtra 12 desse mesmo capítulo.
Portanto, jñāna-niṣṭha, não é conquistado, simplesmente, tornando-se um sannyāsi, pois karma yoga também é um meio para isso; é uma atitude a ser praticada. Na realidade, sem um compromisso com karma yoga, sannyāsa não é possível. Somente através de karma yoga, alguém pode tornar-se um verdadeiro renunciante; pois, somente ali, haverá a sincera escolha entre um estilo de vida ou outro. Tentar tornar-se um renunciante, pelo simples desejo de ser um renunciante, sem compreender o que é, realmente, a renúncia, pode trazer sérios conflitos emocionais mais tarde.
Se houve o ganho dessa capacidade de apreciação, em detrimento de ser essa pessoa, constantemente, exigente; através de uma vida de karma yoga. Se você se vê satisfeito consigo mesmo (ānanda; como citado no sūtra 17, desse mesmo capítulo), então é possível acomodar a si mesmo; sentar-se consigo mesmo. Somente aí, sannyāsa torna-se uma possibilidade. Então, a noção de que Eu não sou o ator, mesmo que a ação exista, é possível. A mera renúncia, portanto, não significa liberdade.
Portanto, Patañjali apresenta esse sūtra com a preposição “ou”, para mostrar que, com maturidade, pode haver uma escolha entre esses dois estilos de vida.
Se existem gostos e aversões que ainda precisam ser cuidados; é melhor viver uma vida de karma yoga. Por outro lado, se a pessoa se vê contemplativa e inclinada a viver uma vida interessada, apenas, em autoconhecimento; então, está preparada para renunciar. Isso significa que ela já viveu uma vida significativa, lidou com os seus desejos e, agora, está pronta para a renúncia.
A Bhagavad Gītā diz:
“Yataḥ pravṛttirbhūtānāṃ yena sarvamidaṃ tatam
svakarmaṇā tamabhyarcya siddhiṃ vindati mānavaḥ” (BG 18;46)
“Aquele, a partir do qual todos os seres existem. Através desse que tudo permeia. Apreciando-o através do cumprimento das próprias responsabilidades, alcança aquilo que há de maior.”
Quando eu entendo o dharma como Īśvara; aquilo que tudo governa, eu reconheço essa inteligência, cumprindo com as minhas responsabilidades em qualquer lugar ou tempo. Portanto, aquilo que eu devo fazer; eu faço.
Eu tenho essa capacidade de escolha em relação à ação. Essa é a famosa definição de karma yoga: “yogaḥ karmasu kauśalam”.
Yoga é a habilidade na ação. No sentido de cumprir com as minhas responsabilidades da melhor maneira possível. Mesmo que, às vezes, isso não seja aquilo que eu estou com vontade de fazer.
Isso significa que não estou agindo, simplesmente, pelos meus desejos. Não estou sendo guiado por recompensas.
Anāśritaḥ karmaphalam kāryam karma karoti yaḥ
Sa sannyāsī ca yogī ca na niragnirna cākriyaḥ (BG 6;1)
Aquele que faz o que deve ser feito, sem depender dos resultados das ações é um renunciante; é um yogī (pois, age, entendendo que não é o ator). Diferente de um renunciante que, simplesmente, abriu mão de seus papéis (sem esse entendimento).
Porque todos nós desejamos fazer, apenas, aquilo que nos convém; aquilo que nos agrada. É assim que guiamos as nossas vidas na maior parte do tempo.
No nosso processo de vida, vamos acumulando vários gostos e aversões; as nossas preferências.
Se algo envolve esforço e, sofrimento; eu evito.
Cada um de nós, tem uma função nesse esquema inteligente que são as próprias leis do universo. Que é o dharma, que é Īśvara. Quando fazemos aquilo que deve ser feito, estamos de acordo com essas leis. É por isso, que quando fazemos o que deve ser feito, temos essa sensação de satisfação. Mesmo quando não é algo que desejamos fazer; porém, quando feito nos sentimos bem em relação a nós mesmos. Porque estamos de acordo com essas leis, essa inteligência que tudo sustenta; Īśvara. Quando reconhecemos isso e, aplicamos isso na vida, nos tornamos yogīs.
Essa atitude desenvolve uma mente madura. Essa mente madura é aquela que está preparada para entender quem é o ator e quem sou Eu. Isso é samatvam. Isso é moksa. A liberdade da identidade dos pares de opostos que afligem o indivíduo.