Eu amo meu ego. Esta frase pode soar bem estranha quando a dizemos no meio do Yoga, já que alguns praticantes parecem ter um preconceito muito forte em relação a ele. A verdade é que é graças ao ego que estou aqui. Foi através dele que fiz minhas escolhas ao longo da vida. Foi através dele que criei minha identidade enquanto indivíduo e é através dele que posso ser quem sou na sociedade. Portanto, preciso compreender (e gostar!) do meu ego.
Não obstante serem verdadeiras essas constatações que acabamos de listar, o simples fato de admitir que se tem um ego é muito mal visto em alguns círculos de praticantes. A razão desse preconceito em relação ao ego é a grande confusão causada por professores que, tendo um conhecimento fragmentário e nenhum vínculo com a tradição do Yoga, começaram a espalhar a ideia de que o ego é um inimigo que precisa ser derrotado.
Cabe lembrar que essa ideia não aparece nos śāstras. Ou, se a ideia de “destruir” o ego aparecer em algum texto, como é o caso do Upadeśa Sāram, de Rāmaṇa Maharṣi, essa ideia é colocada de forma simbólica e não deve, de maneira alguma, ser interpretada literalmente.
Ora, se não tenho ego, tampouco terei a capacidade de fazer escolhas e, com isso, acabo aceitando o que é dito, ou, pior ainda, deixo que outros escolham por mim. Isso é perigoso, para dizer o mínimo. Os outros dois grandes perigos de praticar Yoga com essa atitude são:
1) ficarmos tolhidos, incapazes de conviver em sociedade, e
2) nunca chegar na meta que o Yoga nos propõe.
É necessário entendermos que o ego não é bom, nem ruim em si mesmo. Ele apenas cumpre uma função em nossas vidas: nos ajudar a fazer escolhas.
Como disse no primeiro parágrafo deste artigo, é através do ego que faço minhas escolhas. Se não fosse por ele, não sairia da minha cama todas as manhãs. Não conseguiria escolher minhas roupas, nem o que fazer.
É através do ego que consegui formar minha personalidade. É através dele que consigo interagir com o mundo. O ego é esta noção de eu que me estabelece como um indivíduo. A ele se atribui um nome, características físicas, emocionais e sociais, através dos quais eu consigo me reconhecer.
Imagine se não houvesse nomes? Como chamaríamos uns aos outros? Imagine se não houvesse diferenças físicas ou emocionais entre todos nós? Qual seria a graça da vida, sendo tudo igual?
Por causa do ego, podemos ter profissões diferentes, idéias diferentes, podemos cumprir diferentes papéis, e desta forma, construirmos uma sociedade onde cada um contribui de uma forma diferente.
Segundo a visão do Vedānta, nós somos dotados de uma ferramenta bastante especial para nos relacionarmos com o mundo. Em sânscrito, ela recebe o nome de antaḥkāraṇa, ou instrumento interno.
A grosso modo poderia ser traduzido apenas como mente. Mas esta mente é subdividida em quarto partes com diferentes funções, segundo Śrī Śaṅkarācārya ensina no Tattvabodhaḥ:
“A partir do aspecto sáttvico dos cinco elementos, nascem a mente (manas), intelecto (buddhi), ego (ahaṅkāra) e memória (citta). Estes formam o antaḥkāraṇa. A natureza da mente é a dúvida. A natureza do intelecto é a decisão. A natureza do ego é esta noção de que eu faço. A natureza da memória é guardar aquilo que já foi vivido.”
Depois de explicar a natureza de cada um, Śaṅkara, explica também como cada um funciona e se comporta relacionando-os com determinados atributos de certas deidades:
“A deidade que preside a mente é a lua [pois assim como a lua, a mente tem fases). Brahmā é aquele quem preside o intelecto [já que a partir de decisões, objetos e situações são criados]. Rudra preside o ego [através de nossas ações, promovemos mudanças]. Vāsudeva preside a memória [representa a manutenção, noutras palavras]”.
Portanto, a ideia de dissolver ou destruir o ego não é nada saudável. Para desfazer esta confusão, podemos analisar algumas escrituras que lançam luz sobre a questão. Um exemplo clássico desta confusão é o segundo sūtra de Patañjali, que define o Yoga. Na maioria das traduções, sempre vemos que o sūtra é traduzido ao pé da letra e sem conectá-lo com a totalidade do ensinamento que segue nos sūtras seguintes.
Isso faz com que a tradução fique sem sentido: “Yoga é a cessação dos movimentos da mente”, ou “Yoga é controle dos movimentos da mente” são exemplos de traduções parciais e incorretas já que, quando analisamos estas afirmações com cuidado, percebemos que elas são ilógicas e impossíveis.
Outra coisa impossível de ser feita, é controlar o que será pensado. Nenhum de nós tem esta capacidade. Os pensamentos simplesmente vêm. Portanto, Patañjali estaria equivocado ou somos nós que não tivemos clareza suficiente para compreendermos seu ensinamento?
Temos que compreender que os sūtras são compostos de maneira a excluir tudo o que for possível excluir, para facilitar a memorização. Portanto, apenas passar os olhos sobre o texto sem o devido cuidado, pode deixar profundas lacunas na nossa compreensão.
O sūtra citado diz yogaścittavṛttinirodhaḥ. Nós traduzimos ele da seguinte maneira: “Yoga é a cessação [da identificação] com os movimentos do psiquismo (cittavṛttis)”.
Aqui Patañjali define o que é esta disciplina chamada Yoga. Normalmente este sūtra é traduzido como o “controle da mente”, mas novamente temos que atentar para o que é este controle. Na palavra nirodhah, está o radical rudh. Rudh significa comandar sem esforço. Comandar, portanto, naturalmente. Mas mesmo entendendo este radical, a compreensão deste sūtra fica um pouco superficial.
Na Bhagavadgītā, Kṛṣṇa define o Yoga da seguinte forma: tam vidyādduhkhasaṁyogaviyogaṁ yogasañjñitam sa niscayena yoktavyo yogonirvinnacetasā. VI:23.
“Que se saiba que esta dissociação da associação com o sofrimento é chamada Yoga. Yoga deve ser seguido com determinação e sem uma mente que tenha indiferença.” O sofrimento é fruto de nossa identificação com os vrttis (julgamentos, pensamentos, projeções…).
Quando me identifico com um destes objetos, automaticamente me vejo limitado à forma e atributo que vem junto deste. E este é o problema que podemos ter em relação ao ego. O ego se atribui as diversas qualidades. Mas eu devo entender que são qualidades do ego, e não minhas.
É verdade que diversas vezes, nas nossas vidas, nos vemos fortemente apegados a estes atributos, e fazemos todo o esforço possível para não perdê-los. Neste momento, a disciplina do Yoga se mostra valiosa, pois é através do autoestudo que começamos a discernir quem somos e quem pensamos ser. Através desta disciplina compreendo quem sou eu e quem é o ego.
O eu é sempre livre, imutável e nada faz. Portanto também não se relaciona com o resultado das ações. O ego é quem faz. Por isso em sânscrito é chamado de ahaṅkāra, ou, o eu que faz. Este sim, por agir, lida com os resultados de suas próprias ações.
Uma das coisas mais difíceis, para todos nós, na vida, é saber lidar com os resultados das nossas ações. Sempre que agimos, pensamos ter o poder sobre o resultado da ação. E, pior do que isso, nos qualificamos Segundo estes resultados.
Quando um resultado é favorável, nos achamos vencedores, pessoas de sucesso. Ficamos felizes, pois apoiamos aquilo que somos nos resultados. Da mesma forma, quando um resultado é “desfavorável”, nos classificamos como incapazes, e ali nos tornamos pessoas infelizes.
Usei as palavras favorável e desfavorável entre parênteses, porque na verdade esta qualificação é feita pelo ego. Pelos gostos e aversões que possuo na vida. Na verdade um resultado é apenas um resultado. E pessoas diferentes podem qualificar um mesmo resultado de formas diferentes. Poranto o problema não é o resultado em si, mas como me identifico com ele.
O ego, quando não cumpre o seu papel devidamente, faz com que nos tornemos pessoas exageradamente exigentes. Estes padrões de exigência são impostos pela sociedade. Seja forte, belo, rico, etc.
Mas estes padrões se estabelecem apenas quando há comparações. Seja forte, mas qual é o parâmetro de força? Seja rico, mas o que indica riqueza? Só quando há comparação. Sou mais forte que fulano, sou menos rico que beltrano.
Não há nada de errado em ser rico ou pobre, alto ou baixo, gordo ou magro. Quando compreendo que todos estes são atributos do corpomente que se modificam constantemente, quando tenho este entendimento, me dou conta de que, apesar de todas estas mudanças, aquele que sou é invariável.
Para conquistar este entendimento, é necessário maturidade, clareza. É necessário também querer este conhecimento. Há um exercício bastante simples que podemos fazer todos os dias, e que deve ser bastante familiar para quem já pratica.
Ao final de uma prática de āsanas, sempre há um momento dedicado ao relaxamento. Neste momento, fechamos os olhos. É neste momento que deixamos de fazer uma das comparações mais fortes que geralmente fazemos, que é a visual.
Agora ninguém está olhando para você, e você não olha para ninguém. Ninguém está te julgando, tampouco você julga. Ningúem está se comparando. Ninguém está exigindo que um papel seja desempenhado de sua parte, nem você, de outra pessoa. Você não exige nada de si mesmo. Você é apenas você. Esta pessoa tranquila. E esta tranquilidade não é fruto de nenhum esforço. Esta tranquilidade se revela quando você ser permite ser quem você é.
Você não é o indivíduo composto por atributos sutis e densos. Você apenas é. O julgamento é outra questão ligada ao ego que incomoda muitas pessoas. Já cansei de ouvir a famosa frase: “não julgo”, ou então me dizem: “não julgue! Você é um professor de Yoga!”
O julgamento é uma faculdade do ego. E todos nós estamos julgando o tempo inteiro. Não há vida sem julgamentos. É através do julgamento, feito pelo ego, que estabeleceremos o que faremos, como nos vestirmos e etc. Por isso, eu julgo, você julga, todos julgam!
Novamente, aqui, temos que esclarecer que o julgamento não é bom, nem ruim em si. É apenas o que o ego tem que fazer. E ainda bem que isso acontece, senão nada seria feito nesta vida.
Por isso o julgamento é necessário. E necessário também é aprender a não se ver como o julgamento que você faz. Você é uma coisa, o julgamento, outra.
Leve em conta que se você pratica Yoga hoje, é porque você julgou ser algo interessante para a sua vida. Se você é vegetariano, é por causa do seu julgamento. A sua escolha em não maltratar os animais, foi feita pelo seu ego. Se você leu este artigo até aqui, foi graças ao ego.
Eu amo meu ego e quero que ele continue sempre me ajudando a fazer as escolhas na vida. Quanto aos resultados, cabe a mim, também, aprender a acomodá-los.