E o Karma? É crença?
O karma, em um contexto mais direto e lógico, é como a 3a lei de Newton: a lei da ação e reação. Mas, aqui, significa que para cada ação, existirá um resultado, que não precisa, necessariamente, ser de força exatamente oposta, como na lei da física.
Isto se chama, em sânscrito, dṛṣṭa phālam, ou seja, o fruto visível de uma ação. Se algo é feito, logo um resultado será visto. É algo tangível.
Portanto, Karma é fato, até a página 2…
Mas, para a primeira porção do Veda, também existe um tipo de resultado que não é imediato; e que parece estar relacionado à intenção que impulsiona a ação e, também, à idéia deste legislador, que julgará a ação como adequada ou inadequada, dando assim, o resultado merecido. Este resultado virá na forma de pūṇyam ou pāpam; experiências agradáveis ou desagradáveis pelas quais terei que passar.
A ideia do paraíso, por exemplo, é algo, totalmente, especulativo, pois não há conhecimento direto sobre o tema. Outro nascimento, ou, um nascimento com melhores condições, também é, totalmente, especulativo, embora o Veda diga que pode ser alcançado através de uma vida dharmica.
Portanto, o Veda fala sobre meios de ação conhecidos para nós (dharma), que podem oferecer resultados desconhecidos. E ações sem relação alguma com objetivo, que podem trazer resultados concretos, como o nascimento de uma criança.
Ora, nós já vimos que existe uma ordem que determina todo o desenvolvimento deste universo, através das suas leis naturais. E, também vimos, que existem aqueles que acreditam que existe um criador, ou uma personalidade, diferente da própria criação que parece julgar e determinar, à partir das suas preferências, aquilo que cada um viverá. Cabe a cada um, determinar o que faz mais sentido. O Veda apresenta estas duas visões.
A primeira parte do Veda; o karma kaṇḍa, é chamada de pravṛtti. Isto significa que algumas ações são prescritas para que se alcance determinados objetivos. Dentro deste escopo, está a busca pela prosperidade, progênie; e até mesmo coisas que não podemos comprovar como o suposto paraíso, ou um renascimento com melhores condições.
Estas prescrições estão na forma dos rituais ou karmas (que significa agir, ou, ações); que podem ser realizadas mentalmente (mānasa), oralmente (vācika) ou fisicamente (kāyīka).
No entanto, a porção final do Veda, que são as upaniṣads, ou, vedānta, ou jñāna kaṇḍa, também é chamada de nivṛtti; no sentido de que se apresenta negando muito do que foi exposto na primeira parte. Isto também é conhecido como neti neti (como ainda veremos adiante), “não é isto, não é isto”; quando os grandes pensadores de vedānta mostram como a identificação com os objetos com os quais nos relacionamos é equivocada.
Para pravṛtti, o ator é levado em consideração. Ele deve fazer certas coisas para conquistar determinados objetivos. Acredita-se que a felicidade, ou satisfação tão desejada, jaz nestas conquistas. Enquanto em vedānta, o ator não é considerado como Eu. Portanto, esta identificação com o ator é dissolvida. A grande conquista, para vedānta é o entendimento de que não estou limitado a este ator; e isto se estabelece no reconhecimento deste Eu, livre de limitação, que é ātmā.
Esta porção do veda que estabelece que Eu sou a realidade de tudo aquilo que existe; que sou pleno, feita nesta forma de negação, dissolve todos estes conceitos que assumimos em relação a nós mesmo.
Algumas críticas à forma de pensar e ver o mundo e a mim mesmo, apresentadas no karma kaṇḍa, aparecem de forma bem nítida nas upaniṣads. Na Kaṭha Upaniṣad, Naciketas é abençoado pelo senhor da morte com 3 desejos. No desejo número 2, ele deixa isto bem claro: ele pede ao senhor da morte que o ensine o ritual, através do qual as pessoas consigam conquistar tudo aquilo que elas desejam (artha, kāma ou dharma). Ou seja, se é isto que as pessoas almejam, que seja assim. Que a barganha com Īśvara seja por estas coisas efêmeras.
Este tema é abordado logo nos primeiros mantras da kaṭha upaniṣad, quando é relatado o desejo do pai de Naciketas pelo paraíso. Ele acredita que pode ser conquistado através de um determinado ritual, chamado viśvajit-yājña
Om uśan ha vai vājaśravasaḥ sarvavedasaṁ dadau |
Tasya ha naciketā nāma putra āsa || (1)
Om. Certa vez, desejando o paraíso, Vājaśravasa doou toda a sua riqueza em um ritual. Ele tinha um filho chamado Naciketas.
Taṁ ha kumāraṁ santaṁ dakṣiṇāsu nīyamānāsu |
Śraddhāviveśā so’manyata || (2)
Quando as dakṣinās estavam sendo recebidas (pelos sacerdotes do ritual), mesmo sendo um menino, Naciketas foi tomado por Śraddhā (o entendimento de que o Veda é um meio de conhecimento e, não uma ferramenta para conquistas pontuais). Ele pensou:
Pītodakā jagdhaṭṛṇā dugdhadohā nirindriyāḥ |
Anandā nāma te lokāstān sa gacchati tā dadat || (3)
Aquelas vacas (oferecidas como dakṣinā) que beberam água (pela última vez), que comeram grama (pela última vez), das quais já oi extraído (todo) o leite e, sem força; não te levarão ao paraíso, mas para lugares aonde a felicidade não existe.
Sa hovāca pitaraṁ tata kasmai māṁ dāsyasīti |
Dvitīyaṁ tṛtīyaṁ taṁ hovacā mṛtyave tvā dadāmīti || (4)
Então, ele diz ao pai: Pai! A quem você me oferecerá como dakṣinā? (Se o teu desejo é o paraíso, algo decente deve ser oferecido. Não apenas algumas vacas magras e à beira da morte). Perguntou uma segunda e uma terceira vez; até que seu pai disse: Te darei à morte.
No pedido número 3, Naciketas “pede” mokṣa. Coloco entre parênteses pedir, pois não é um objeto. É aquilo que você já é, naturalmente e, apenas não reconhece. Não precisamos pedir pelo que já somos.
A oportunidade é de ouro, já que, o senhor da morte, é aquele que pode dizer, com certeza, aquilo que nem mesmo ele pode matar; o ātmā.
Portanto, Naciketas não está interessado em fazer alguma coisa, de olho em algum resultado. Naciketas deseja o conhecimento.
Outra composição que aborda esse tema é a história de Hiranyakaśipu e seu filho Prahlada (aquele que é salvo por Narasimha).
Hiranyakaśipu era um rei que tinha qualidades de. Um asūra é alguém guiado por seus desejos (Asūṣu ramante iti asurāḥ) e, que embora conheça o que é o dharma, resolve viver a sua vida de forma adharmica.
Portanto, Hiranyakaśipu estava interessado em prazer, poder e reconhecimento. Era tudo o que havia de valioso para ele. Ele recorria a inúmeros rituais para conquistar o que desejava; que, no fim das contas, é resolver essa sensação de vazio e inadequação que todos sentimos.
Já o seu filho, mesmo com cinco anos de idade, já tinha uma apreciação e reverência por essa ordem que é Īśvara e, seu pai, não podia suportar tal comportamento; provavelmente por ter uma certa inveja dessa capacidade de vairāgya de seu filho.
Em um determinado momento, Prahlada se dirige ao seu pai da seguinte maneira: “Não é dado à pessoas como você conhecer a grandeza de Īśvara. Pessoas que estão presas às posses deste mundo, no desfrute dos sentidos, em passar pelos canais do prazer, embora saibam que não cedem prazer, são como cegos sendo conduzidos por outros cegos. Você realiza os ritos que são prescritos no Veda: o Karma Kanda do Veda.
E aqueles que lhe pedem para realizá-los são tão ignorantes quanto você sobre a Verdade. Você pensa que o fim e o objetivo desta vida é a satisfação dos seus desejos e das suas pequenas e mesquinhas ambições. O seu estado é realmente lamentável.”
Na Mundaka upaniṣad, Śaṅkara, em seus comentários, também critica os rituais. Ele diz: “ritual requer muita coisa. É preciso saber construir um altar. As dimensões dos tijolos, a direção para a qual ele aponta. É necessário saber todos os mantras. Usar a lenha adequada, e também os outros elementos que serão oferecidos ao fogo. Para fazer um ritual de fogo, também é necessário ser casado. E além disto, é a esposa que determina se os recursos da casa poderão ser usados no ritual. E, no final das contas, mesmo que a pessoa cumpra com todas estas coisas, é preciso entender que não há garantia de que o resultado será o desejado; já que, eu não escolho os resultados das ações. Estes resultados dependem desta ordem cósmica, que é o próprio dharma, ou, Īśvara.”
Portanto, até mesmo esta história de adṛṣṭaphalam, ou, o fruto não visível das nossas ações, na forma de pūṇyam e pāpam, deve ser questionado dentro da tradição. Qual o embasamento ou qual comprovação temos de que as nossas ações definirão o que existe após a vida? Será que existe pós-vida? Quem pode afirmar com 100% de certeza? E, vivendo sob esta especulação, acabo vivendo a minha vida com medo do que poderá acontecer. Eu vivo a vida com medo deste Deus; que tem as suas preferências. Como se a minha vida estivesse sujeita à uma tabela de merecimento, relativo às minhas ações.
Isso acontece pela falta de discriminação. A falta de entendimento relativa à natureza do Ser. As pessoas acreditam que o ātmā está sujeito a pūnyam e pāpam; ou seja, a algum tipo de limitação (doṣa).
Então, as pessoas só enxergam essas diferenças e, por isso, acreditam que carregam, cada um a sua bagagem de pūnyam e pāpam. Isso acontece porque se identificam como atores. Elas não conseguem ver a não-ação na ação; que é o principal ensinamento da Gītā (jñāna-karma-sannyāsa).
Então, para essas pessoas, existe esse conceito de samsāra. Conceito, pois não é real. Para o Ser, não existe nem nascimento e nem morte. Porém, identificado com o indivíduo, a pessoa acredita trazer uma bagagem de uma vida prévia e, nessa vida, acrescenta mais um pouco. Depois, quando morre, acredita, também, que essa bagagem a conduzirá a algum lugar. Se estou assumindo um outro lugar; estou assumindo a limitação como algo real. Então o ensinamento tat tvam asi, não faz sentido algum.
Na prahṛṣyetpriyaṃ prāpya nodvijetprāpya cāpriyam
Sthirabuddhirasammūḍho brahmavid brahmaṇi sthitaḥ (BG 5;20)
Aquele que entende brahman; que é firme em brahman. Aquele que possui o firme entendimento e’é livre da confusão não se empolga porque conquistou aquilo que desejava (pūnyam) e, tampouco sofre diante do indesejável (pāpam).
Esse verso deve ser bem compreendido. Por isso, devemos fazer uma referência ao segundo sūtra do primeiro capítulo. No qual, Patañjali fala sobre a mente não reativa. Pode haver a impressão de que a pessoa não tem mais nenhum tipo de emoção. Não é isso. A pessoa não tem mais reações emocionais tão intensas, provocadas pelas suas preferências, que podem fazer com que ela perca o equilíbrio (samatvam).
Para as pessoas que compreendem tat tvam asi, não existe nada a temer; pois brahman sendo o livre de limitação e, acima de tudo, Eu sendo brahman, não existe ida, nem volta. Pois, não há nada separado ou diferente dessa inteligência que é Īśvara; que é brahman, que é o ātmā, que sou Eu.
Basta ver as pessoas em templos ou igrejas. Sempre com as cabeças abaixadas, como se carregassem alguma espécie de culpa. O tal pecado original. Portanto, aqui, é importante frisarmos os aspectos culturais e religiosos desta tradição. A especulação sobre reencarnação, paraíso, inferno, etc, existiam. Assim como existe hoje, também, na nossa cultura e religião. O ponto, aqui, é, separar a religião da espiritualidade. Lembrando que, a religião é permeada por dogmas e crenças, enquanto a espiritualidade é libertadora, pois te faz um convite ao raciocínio independente; o cultivo de uma mente autônoma. É necessário, sempre, ter em mente que acreditar, limita a capacidade da mente; enquanto compreender, faz com que ela mantenha-se livre.
É bastante comum, ouvimos a pergunta: “Mas, os rituais não continuam sendo executados até hoje?”
Sim! Continuam. Por isso, é necessário compreender este contexto cultural e religioso dentro da sociedade da Índia. Como acabei de dizer, não é muito diferente do nosso contexto. Mas, vamos pontuar certos aspectos.
Uma vez, ouvi um indiano dizer, em um dos satsangas que participei com o Swāmi Dayānanda: “Swāmiji, vou todos os dias ao templo, mas não tenho a menor idéia do que ocorre lá dentro. Não compreendo os mantras, a ritualística; mas, tenho medo que se algum dia, eu não for, algo aconteça comigo.”
A pessoa vive com medo. Isto não é tão diferente do que vivemos na nossa cultura. A pessoa vive com medo, pois ignora a sua natureza e a natureza de Deus.
Então, vamos tentar mudar o foco da palavra ritual, para a palavra karma. Afinal de contas, estamos falando sobre o que está sendo prescrito no karma kaṇḍa.
Esta porção do veda, prescreve karmas, ou seja, ações que me ajudem na conquista daquilo que eu desejo, apontado pelos puruṣārthas. E, o problema não é o desejo, pois não existe vida sem desejos. O problema é que me torno escravo da necessidade que estes desejos se realizem para que eu me reconheça como uma pessoa satisfeita, completa. Ou, ainda, acredito que a felicidade está na forma de um objeto.
Então, se eu abraço essa visão de um Deus separado de mim, como proposto no sutra 24 do primeiro capitulo, eu abro mão da ideia (lógica) de Īśvara como essa inteligência imparcial, que rege todo o universo. Vou abrir mão, também, dessa ideia de Tat tvam asi; ou seja, de que tudo aquilo que existe sou Eu.
Vou ter que abraçar, também, a especulação de vidas passadas e vindouras e, a questão de que tudo que foi feito lá atrás, pode ser responsável pelo o que acontece hoje, na minha vida, devido ao julgamento desse Deus.
Além do que, estarei sempre agindo por causa de um desejo de que esse Deus me reconheça como alguém que seja merecedor de recompensas; ou seja, a minha ação não será guiada pelo dharma; o meu compromisso com as minhas responsabilidades, em fazer o meu melhor. As minhas ações serão guiadas por kāma, o desejo de conquistar algo. O desejo de ser reconhecido.
Tudo isso será contestado pelas upaniṣads; que surgem com a revolucionária idéia de que a felicidade sou Eu, e, não um objeto diferente ou distante de mim.
Por esta razão, esta mente autônoma é tão importante. É preciso questionar o que está sendo apresentado pelo Veda; e, não simplesmente aceitá-lo como o dono de toda a verdade.
Lembre-se que o pensamento humano, dentro desta tradição, também vai mudando de acordo com o tempo. E algumas idéias, tornam-se obsoletas, ou, até mesmo infundadas.